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18/10/2016

Não é questão de gosto

Educando o olhar dos alunos para a verdadeira apreciação artística.

Há uma diferença entre ver e enxergar, entre gostar e apreciar uma obra de arte. Essa diferença diz respeito à chamada leitura de imagens, uma competência tão importante quanto o domínio da linguagem verbal, embora poucos se deem conta disso.

Ao se relacionar com um texto, o leitor precisa se engajar no processo, recorrer a seu conhecimento de mundo e da língua para compreender o que o autor quis dizer. Com imagens não é muito diferente: afinal, imagem também é discurso, construído com método e intenção. Transmite informações, conceitos e valores, relacionados de alguma forma a seu tempo e lugar. E, assim como a linguagem escrita, requer alfabetização – o conhecimento de uma gramática e de uma sintaxe visual –, ampliação de repertório e capacidade de interpretação crítica.

O potencial comunicativo, o contexto social e histórico e as implicações políticas das imagens são elementos centrais no trabalho da professora e assessora de Arte do Sabin, Roberta Moretti. “Na história da Educação Artística, as escolas no Brasil já viveram dois extremos: o de um ensino mais técnico, focado no desenvolvimento de habilidades, e o de um espontaneísmo total, em que tudo o que a criança faz tem valor”, diz a professora.
Seu objetivo no Sabin, explica, é explorar o campo intermediário em que o aluno entra em contato com um conhecimento técnico para expressar, livre e conscientemente, suas ideias. E para formar opinião, com propriedade, sobre o universo artístico. “Apreciação artística não é dizer ‘Gostei’ ou ‘Não gostei’”, diz Roberta. “É olhar para uma obra e refletir a fundo sobre ela”.

Parte desse trabalho consiste em apresentar para a criança o “alfabeto visual” à disposição do artista. Linha e ponto, fundo e figura, cores e formas são aspectos significativos numa obra de arte, carregados de sentido. Podem indicar, por exemplo, qual o personagem principal ou a emoção que um pintor atribuiu a determinada cena.

Porque tentar perceber a intenção do artista faz parte do aprendizado. “Costumo dizer para meus alunos que o artista nos deixa pistas”, diz Roberta. “É uma forma divertida de estimulá-los a prestar atenção de verdade”. Em uma aula de Arte do Pré II, por exemplo, a professora apresenta à turma diversas representações do corpo humano ao longo da História da Arte, das pinturas rupestres à “Mona Lisa”, de Da Vinci, e às “Senhoritas de Avignon”, de Picasso. Como condutora da investigação, ela dá tempo para que os alunos percebam o elemento comum a todas: “O que essas obras mostram? Por que vocês acham isso?”, pergunta. O tema, aliás, não é por acaso: é no Pré II que as crianças aprendem sobre o corpo humano, nas aulas de Natureza e Sociedade.

O exemplo deixa claro, ainda, outro aspecto importante sobre a qual os alunos terão consciência, mais à frente: que a Arte é influenciada pelo contexto social e histórico do artista. E que, portanto, conhecer esse contexto é essencial para a compreensão e apreciação crítica de uma obra.

É o que acontece no 3º ano do Ensino Fundamental, quando, ao serem apresentados ao quadro “A Negra”, de Tarsila do Amaral [1886-1973], a primeira reação dos alunos costuma ser a de rir do enorme seio da personagem, repousado sobre seu braço direito. Até que uma pesquisa sobre a pintora e o quadro revela que aquele é, provavelmente, um retrato de sua ama de leite. Seio e obra ganham outro significado, relacionado à realidade de um Brasil escravocrata, estudado nas aulas de História.

Estudar obras de arte assim abre possibilidades de aprendizado para além da Arte. Há conhecimento a ser adquirido nas obras de arte, e não apenas no que diz respeito ao vocabulário ou às técnicas específicas do campo artístico. “Arte é cognição para a qual colaboram os afetos e os sentidos”, já afirmou Ana Mae Barbosa, educadora que formulou a chamada “Abordagem Triangular” nos anos 1980, ainda hoje a principal referência de ensino de Arte no Brasil, na qual se baseia o projeto pedagógico do Sabin (ver quadro). E, ao exercitar uma leitura de mundo crítica – por meio da leitura de imagens –, a abordagem estimula também uma participação crítica no mundo.

“Quando o aluno entra em contato com diversas realidades e conceitos por meio da Arte, ele se torna mais tolerante, aberto ao diferente”, diz Dionéia Menin, coordenadora pedagógica da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. A obra de que, a princípio, o estudante apenas gostava ou não, agora ele entende. “Em geral, o ser humano se interessa por histórias, e toda obra conta uma história. Quanto mais você entende por que uma obra é como é, mais você a aprecia”, diz a coordenadora.

Se o caminho da Arte é, em grande medida, um caminho de transgressão a normas estabelecidas – estéticas, políticas, filosóficas –, apreciar Arte é, assim, ter a consciência de que o mundo pode ser transformado e se engajar nessa transformação. É exercitar um olhar crítico, criativo e criador.

Apreciar, Refletir, Fazer
A Abordagem Triangular do ensino da Arte, proposta pela educadora Ana Mae Barbosa nos anos 1980, prevê uma prática pedagógica baseada em três eixos complementares.
– Leitura (da imagem, do objeto, do campo de sentido da obra de Arte).
– Contextualização (da obra e do artista, e sua relação com o contexto do educando).
– Prática Artística (o fazer consciente).